domingo, 28 de setembro de 2014

Estou Tonto

Estou tonto, 
Tonto de tanto dormir ou de tanto pensar, 
Ou de ambas as coisas. 
O que sei é que estou tonto 
E não sei bem se me devo levantar da cadeira 
Ou como me levantar dela. 
Fiquemos nisto: estou tonto. 

Afinal 
Que vida fiz eu da vida? 
Nada. 
Tudo interstícios, 
Tudo aproximações, 
Tudo função do irregular e do absurdo, 
Tudo nada. 
É por isso que estou tonto ... 

Agora 
Todas as manhãs me levanto 
Tonto ... 

Sim, verdadeiramente tonto... 
Sem saber em mim e meu nome, 
Sem saber onde estou, 
Sem saber o que fui, 
Sem saber nada. 

Mas se isto é assim, é assim. 
Deixo-me estar na cadeira, 
Estou tonto. 
Bem, estou tonto. 
Fico sentado 
E tonto, 
Sim, tonto, 
Tonto... 
Tonto. 

Álvaro de Campos, in "Poemas" 
Heterónimo de Fernando Pessoa

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

"São tão simples os homens

"São tão simples os homens e obedecem tanto às necessidades presentes, que quem engana encontrará sempre alguém que se deixa enganar."  
Fonte - O Príncipe - Niccolo Maquiavel

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Nós somos o que fazemos......

"Nós somos o que fazemos. O que não se faz não existe. Portanto, só existimos nos dias em que fazemos. Nos dias em que não fazemos apenas duramos."

António Vieira ( 1608/1697)

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Desabafo!



A melhoria das condições de vida no Brasil depende de cada indivíduo de nossa sociedade e não ao contrário como se fosse à sociedade que moldasse o indivíduo. Quem constrói o todo social é cada ser que nele vive com seus deveres e direitos, assim mesmo, deveres primeiro, direitos depois.
           
Aqui invertemos a ordem das coisas e parece que todos possuem direitos e poucos possuem deveres. Somos todos compadres e cunhados, por isso podemos obter vantagens de favores domésticos nas coisas públicas, pois assim é que está cravado em nossas entranhas em nossos gens. Somos sórdidos com caras de bonzinhos.

Reclamamos das corrupções todo dia, reclamamos dos altos índices de violência todo dia, mas esquecemos que fomos nós mesmos, cada indivíduo que aqui vive que depositou seu quinhão de direitos e poucos deveres na sociedade e não o contrário. 

Alfredo Benatto 

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Os Amigos Nunca São para as Ocasiões

 Os amigos nunca são para as ocasiões. São para sempre. A ideia utilitária da amizade, como entreajuda, pronto-socorro mútuo, troca de favores, depósito de confiança, sociedade de desabafos, mete nojo. A amizade é puro prazer. Não se pode contaminar com favores e ajudas, leia-se dívidas. Pede-se, dá-se, recebe-se, esquece-se e não se fala mais nisso.

A decadência da amizade entre nós deve-se à instrumentalização que tem vindo a sofrer. Transformou-se numa espécie de maçonaria, uma central de cunhas, palavrinhas, cumplicidades e compadrios. É por isso que as amizades se fazem e desfazem como se fossem laços políticos ou comerciais. Se alguém «falta» ou «não corresponde», se não cumpre as obrigações contratuais, é logo condenado como «mau» amigo e sumariamente proscrito. Está tudo doido. Só uma miséria destas obriga a dizer o óbvio: os amigos são as pessoas de que nós gostamos e com quem estamos de vez em quando. Podemos nem sequer darmo-nos muito, ou bem, com elas. Ou gostar mais delas do que elas de nós. Não interessa. A amizade é um gosto egoísta, ou inevitabilidade, o caminho de um coração em roda-livre.

Os amigos têm de ser inúteis. Isto é, bastarem só por existir e, maravilhosamente, sobrarem-nos na alma só por quem e como são. O porquê, o onde e o quando não interessam. A amizade não tem ponto de partida, nem percurso, nem objectivo. É impossível lembrarmo-nos de como é que nos tornámos amigos de alguém ou pensarmos no futuro que vamos ter.
A glória da amizade é ser apenas presente. É por isso que dura para sempre; porque não contém expectativas nem planos nem ansiedade.

Miguel Esteves Cardoso, in 'Explicações de Português'


Miguel Esteves Cardoso
 
n. 25 Jul 1955 Crítico/Escritor/Jornalista 


Portugal

Veja mais em: O CITADOR

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Se no passado....

"Se no passado se vê o futuro, e no futuro se vê o passado, segue-se que no passado e no futuro se vê o presente, porque o presente é futuro do passado, e o mesmo presente é o passado do futuro."

António Vieira

O Homem - Um Ser Egoísta

O motor principal e fundamental no homem, bem como nos animais, é o egoísmo, ou seja, o impulso à existência e ao bem-estar. [...] Na verdade, tanto nos animais quanto nos seres humanos, o egoísmo chega a ser idêntico, pois em ambos une-se perfeitamente ao seu âmago e à sua essência. 
Desse modo, todas as acções dos homens e dos animais surgem, em regra, do egoísmo, e a ele também se atribui sempre a tentativa de explicar uma determinada acção. Nas suas acções baseia-se também, em geral, o cálculo de todos os meios pelos quais procura-se dirigir os seres humanos a um objectivo. Por natureza, o egoísmo é ilimitado: o homem quer conservar a sua existência utilizando qualquer meio ao seu alcance, quer ficar totalmente livre das dores que também incluem a falta e a privação, quer a maior quantidade possível de bem-estar e todo o prazer de que for capaz, e chega até mesmo a tentar desenvolver em si mesmo, quando possível, novas capacidades de deleite. Tudo o que se opõe ao ímpeto do seu egoísmo provoca o seu mau humor, a sua ira e o seu ódio: ele tentará aniquilá-lo como a um inimigo. Quer possivelmente desfrutar de tudo e possuir tudo; mas, como isso é impossível, quer, pelo menos, dominar tudo: "Tudo para mim e nada para os outros" é o seu lema. O egoísmo é gigantesco: ele rege o mundo. 

Arthur Schopenhauer, in "A Arte de Insultar"

quarta-feira, 14 de maio de 2014

A Habilidade Específica do Político


A habilidade específica do político consiste em saber que paixões pode com maior facilidade despertar e como evitar, quando despertas, que sejam nocivas a ele próprio e aos seus aliados. Na política como na moeda há uma lei de Gresham; o homem que visa a objectivos mais nobres será expulso, excepto naqueles raros momentos (principalmente revoluções) em que o idealismo se conjuga com um poderoso movimento de paixão interesseira. Além disso, como os políticos estão divididos em grupos rivais, visam a dividir a nação, a menos que tenham a sorte de a unir na guerra contra outra. Vivem à custa do «ruído e da fúria, que nada significam». Não podem prestar atenção a nada que seja difícil de explicar, nem a nada que não acarrete divisão (seja entre nações ou na frente nacional), nem a nada que reduza o poderio dos políticos como classe. 

Bertrand Russell, in 'Ensaios Cépticos: A Necessidade do Ceptcismo Político'

terça-feira, 13 de maio de 2014

segunda-feira, 12 de maio de 2014

A Sociabilidade é Proporcional à Vulgaridade

O homem inteligente aspirará, antes de tudo, à ausência de dor, à serenidade, ao sossego e ao ócio, logo, procurará uma vida tranquila, modesta e o menos conflituosa possível; por conseguinte, após travar algum conhecimento com aqueles que chamamos de homens, escolherá o reatraimento e, no caso de um grande espírito, até a solidão. Pois, quanto mais alguém tem em si mesmo, menos precisa do mundo exterior e menos também os outros lhe podem ser úteis. Por isso, a eminência do espírito conduz à insociabilidade. Sim, se a qualidade da sociedade pudesse ser substituída pela quantidade, valeria a pena viver até no grande mundo, mas infelizmente cem néscios empilhados não dão um único homem razoável. Já aquele que está no outro extremo, assim que a necessidade lhe permitir recobrar o ânimo, procurará passatempo e companhia a qualquer preço, e a tudo se acomodará facilmente, de nada fugindo a não ser de si.
Pois é na solidão, onde cada um está entregue a si mesmo, que se mostra o que ele tem em si mesmo. Nela, sob a púrpura, o simplório suspira, carregando o fardo irremovível da sua mísera individualidade, enquanto o mais talentoso povoa e vivifica com os seus pensamentos o ambiente mais ermo. Portanto, é bastante verdadeiro o que dizia Séneca: Toda a estultice sofre com o seu próprio fastio, bem como a sentença de Jesus, filho de Sirac: A vida do néscio é pior que a morte. Assim, no todo, acharemos que cada um será tanto mais sociável quanto mais pobre for de espírito, e, em geral, mais vulgar. 

Arthur Schopenhauer, in 'Aforismos para a Sabedoria de Vida'
O Citador

sexta-feira, 9 de maio de 2014

A Cegueira da Governação

Príncipes, Reis, Imperadores, Monarcas do Mundo: vedes a ruína dos vossos Reinos, vedes as aflições e misérias dos vossos vassalos, vedes as violências, vedes as opressões, vedes os tributos, vedes as pobrezas, vedes as fomes, vedes as guerras, vedes as mortes, vedes os cativeiros, vedes a assolação de tudo? Ou o vedes ou o não vedes. Se o vedes como o não remediais? E se o não remediais, como o vedes? Estais cegos. Príncipes, Eclesiásticos, grandes, maiores, supremos, e vós, ó Prelados, que estais em seu lugar: vedes as calamidades universais e particulares da Igreja, vedes os destroços da Fé, vedes o descaimento da Religião, vedes o desprezo das Leis Divinas, vedes o abuso do costumes, vedes os pecados públicos, vedes os escândalos, vedes as simonias, vedes os sacrilégios, vedes a falta da doutrina sã, vedes a condenação e perda de tantas almas, dentro e fora da Cristandade? Ou o vedes ou não o vedes. Se o vedes, como não o remediais, e se o não remediais, como o vedes? Estais cegos. Ministros da República, da Justiça, da Guerra, do Estado, do Mar, da Terra: vedes as obrigações que se descarregam sobre vosso cuidado, vedes o peso que carrega sobre vossas consciências, vedes as desatenções do governo, vedes as injustças, vedes os roubos, vedes os descaminhos, vedes os enredos, vedes as dilações, vedes os subornos, vedes as potências dos grandes e as vexações dos pequenos, vedes as lágrimas dos pobres, os clamores e gemidos de todos? Ou o vedes ou o não vedes. Se o vedes, como o não remediais? E se o não remediais, como o vedes? Estais cegos. 

Padre António Vieira, in "Sermões"

As Vantagens de se Ser um Pobre-Diabo

Para aquele que não é nobre, mas dotado de algum talento, ser um pobre-diabo é uma verdadeira vantagem e uma recomendação. Pois o que cada um mais procura e aprecia, não apenas na simples conversação, mas sobretudo no serviço público, é a inferioridade do outro. Ora, só um pobre-diabo está convencido e compenetrado em grau suficiente da sua completa, profunda, decisiva, total inferioridade e da sua plena insignificância e ausência de valor, tal como exige o caso. Apenas ele, portanto, inclina-se amiúde e por bastante tempo, e apenas a sua reverência atinge plenos noventa graus; apenas ele suporta tudo e ainda sorri; apenas ele conhece como obras-primas, em público, em voz alta ou em grandes caracteres, as inépcias literárias dos seus superiores ou dos homens influentes em geral; apenas ele sabe como mendigar; por conseguinte, apenas ele se pode tornar um iniciado, a tempo, portanto, na juventude, naquela verdade oculta que Goethe nos revelou nos seguintes termos: 

Sobre a baixeza 
Que ninguém se lamente: 
Pois ela é a potência, 
Não importa o que te digam.

Em contrapartida, quem já nasceu com uma fortuna que lhe garanta a existência irá posicionar-se, na maioria das vezes, de modo contestário: ele está habituado a caminhar de cabeça erguida. Não aprendeu aquelas artes da subserviência; talvez até se sirva de eventuais talentos, cuja inadequação, diante do medíocre e servil, é o que deveria compreender. É até mesmo capaz de notar a inferioridade daqueles situados acima dele, e se, enfim, ocorrerem indignidades, torna-se recalcitrante e desconfiado. Mas não é assim que alguém se consegue impor no mundo; antes, talvez, possa ocorrer-lhe dizer como o atrevido Voltaire: Temos apenas dois dias para viver: não vale a pena passá-los arrastando-se aos pés de patifes desprezíveis. Infelizmente, diga-se de passagem, patifes desprezíveis é um predicado para o qual, neste mundo, existe um número assustador de sujeitos. 

Arthur Schopenhauer, in 'Aforismos para a Sabedoria de Vida

Só se dedicará....

"Só se dedicará a um assunto com toda a seriedade alguém que esteja envolvido de modo imediato e que se ocupe dele com amor. É sempre de tais pessoas, e não dos assalariados, que vêm as grandes descobertas."

Arthur Schopenhauer

quarta-feira, 7 de maio de 2014

A Felicidade Pertence aos que se Bastam a si Próprios

Cada um deve ser e proporcionar a si mesmo o melhor e o máximo. Quanto mais for assim e, por conseguinte, mais encontrar em si mesmo as fontes dos seus deleites, tanto mais será feliz. Com o maior dos acertos, diz Aristóteles: A felicidade pertence aos que se bastam a si próprios. Pois todas as fontes externas de felicidade e deleite são, segundo a sua natureza, extremamente inseguras, precárias, passageiras e submetidas ao acaso; podem, portanto, estancar com facilidade, mesmo sob as mais favoráveis circunstâncias; isso é inevitável, visto que não podem estar sempre à mão.
Na velhice, então, quase todos se esgotam necessariamente, pois abandonam-nos o amor, o gracejo, o prazer das viagens, o prazer da equitação e a propensão para a sociedade. Até os amigos e parentes nos são levados pela morte. É quando, mais do que nunca, importa saber o que alguém tem em si mesmo. Pois isso se conservará por mais tempo. Mas também em cada idade isso é e permanece a única fonte genuína e duradoura da felicidade. Em qualquer parte do mundo, não há muito a buscar: a miséria e a dor preenchem-no, e aqueles que lhes escaparam são espreitados em todos os cantos pelo tédio. Além do mais, via de regra, impera no mundo a malvadez, e a insensatez fala mais alto. O destino é cruel e os homens são deploráveis. Num mundo com tal índole, aquele que tem muito em si mesmo assemelha-se ao iluminado recanto de Natal, aquecido e aprazível no meio da neve e do gelo da noite de dezembro. Por conseguinte, ter uma individualidade meritória e rica e, em especial, muita inteligência, é sem dúvida a sorte mais feliz sobre a terra, por mais diversa que possa ser da sorte mais brilhante. 
Arthur Schopenhauer, in 'Aforismos para a Sabedoria de Vida'
CITADOR

Muitos Meios e Saber de pouco Servem

Vivemos num tempo que se sente fabulosamente capaz de realizar, porém não sabe o que realizar. Domina todas as coisas, mas não é dono de si mesmo. Sente-se perdido na sua própria abundância. Com mais meios, mais saber, mais técnica do que nunca, afinal de contas o mundo actual vai como o mais infeliz que tenha havido: puramente à deriva. Ortega y Gasset, in "A Rebelião das Massas"

Por que não Haverá de Mim um Deus?

Se a cada coisa que há um deus compete, 
Por que não haverá de mim um deus? 
Por que o não serei eu? 
É em mim que o deus anima 
Porque eu sinto. 
O mundo externo claramente vejo — 
Coisas, homens, sem alma. 

Ricardo Reis, in "Odes" 
Heterónimo de Fernando Pessoa

segunda-feira, 5 de maio de 2014

AUSÊNCIA

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

Carlos Drummond de Andrade

Deus é espontaneidade

“Deus é espontaneidade
Portanto, o mandamento é: seja espontâneo”.

“Um encontro de dois: olho a olho, cara a cara

E quando estiveres perto, arrancarei teus olhos
E os colocarei no lugar dos meus
E tu arrancarás meus olhos
E os colocará no lugar dos teus

Assim até a coisa comum serve ao silêncio e,
Nosso encontro é a meta sem cadeias:
O lugar indeterminado, em um momento indeterminado,
a palavra indeterminada ao homem indeterminado”

Jacob Levy Moreno
Psicodrama da loucura

Ed. Ágora Ltda. São Paulo, 1980

segunda-feira, 28 de abril de 2014

A Alegoria da Caverna

- Imagina agora o estado da natureza humana com respeito à ciência e à ignorância, conforme o quadro que dele vou esboçar. Imagina uma caverna subterrânea que tem a toda a sua largura uma abertura por onde entra livremente a luz e, nessa caverna, homens agrilhoados desde a infância, de tal modo que não possam mudar de lugar nem volver a cabeça devido às cadeias que lhes prendem as pernas e o tronco, podendo tão-só ver aquilo que se encontra diante deles. Nas suas costas, a certa distância e a certa altura, existe um fogo cujo fulgor os ilumina, e entre esse fogo e os prisioneiros depara-se um caminho dificilmente acessível. Ao lado desse caminho, imagina uma parede semelhante a esses tapumes que os charlatães de feita colocam entre si e os espectadores para esconder destes o jogo e os truques secretos das maravilhas que exibem. 
- Estou a imaginar tudo isso. 
- Imagina homens que passem para além da parede, carregando objectos de todas as espécies ou pedra, figuras de homens e animais de madeira ou de pedra, de tal modo que tudo isso apareça por cima do muro. Os que tal transportam, ou falam uns com os outros, ou passam em silêncio. 
- Estranho quadro e estranhos prisioneiros! 
- E, no entanto, são ponto por ponto tal qual como nós. Em primeiro lugar, julgas que percepcionarão outra coisa, de si mesmos e dos que se encontram a seu lado, além das sombras que na sua frente se produzem, no fundo da caverna? 
- Que outra coisa poderão ver, pois que, desde o nascimento, foram compelidos a conservar a cabeça permanentemente imóvel? 
- Verão, apesar disso, outras coisas além dos objectos que passam à sua rectaguarda? 
- Não. 
- Se pudessem conversar uns com os outros, não concordariam em dar às sombras que vêem os nomes dessas mesmas coisas? 
- Sem dúvida.

- E se no fundo da sua prisão houvesse eco que repetisse as palavras daqueles que passam, não imaginariam que ouviam falar as sombras mesmas que desfilam diante dos seus olhos? 
- Sim. 
- E, por fim, não julgariam eles que nada existiria de real além das sombras? 
- Não há dúvida. 
- Pensa agora naquilo que naturalmente lhes aconteceria se fossem libertados das suas cadeias e se fossem elucidados acerca do erro em que estavam. Liberte-se um desses cativos, e que ele seja obrigado a levantar-se imediatamente, a voltar a cabeça, a andar e a enfrentar a luz: nada disso poderá fazer sem grande esforço; a luz encandear-lhe-á a vista e o deslumbramento produzido impedi-lo-á de distinguir os objectos cujas sombras via antes. Que julgas tu que responderia se lhe dissessem que até então apenas vira fantasmas e que agora tem ante os olhos objectos mais reais e mais próximos da verdade? Se lhe mostrarem imediatamente as coisas à medida que se forem apresentando, e se for obrigado, à força de perguntas, a dizer o que é cada uma delas, não ficará perplexo e não julgará que aquilo que dantes via era mais real do que aquilo que agora se lhe apresenta? 
- Sem dúvida. 
- E se o obrigassem a enfrentar o fogo, não adoeceria dos olhos? Não desviaria os seus olhares, para dirigi-los para a sombra, que enfrenta sem dificuldade? Não julgaria que essa sombra possui algo de mais claro e distinto do que tudo quanto se lhe mostra? 
- Certamente. 
- Se agora o arrancarmos da caverna e o arrastarmos, pela senda áspera e fragosa, até à claridade do Sol, que suplício o seu por ser assim arrastado! Como está furioso! E, uma vez chegado à luz livre, os olhos ofuscados com o fulgor dela, poderia ver alguma coisa da multitude de objectos a que chamamos seres reais? 
- De início ser-lhe-ia impossível. 
- Necessitaria de tempo, sem dúvida, para se acostumar a eles. Aquilo que distinguiria melhor seria, em primeiro lugar, as sombras; e, logo a seguir, as imagens dos homens e dos mais objectos, reflectidos à superfície das águas; por fim, os próprios objectos. Daí volveria os olhos para o céu, cuja visão suportaria com maior facilidade durante a noite, à luz da Lua e das estrelas, do que durante o dia, à luz do Sol. 
- Sem dúvida. 
- Por fim, encontrar-se-ia em condições, não só de ver a imagem do Sol nas águas e em tudo aquilo em que se reflicta, como de olhá-lo e contemplar o verdadeiro Sol no seu verdadeiro local. 
- Sim. 
- Depois disto, pondo-se a reflectir, chegaria à conclusão de que o Sol é o que determina as estações e os anos, e o que rege todo o mundo visível e que, de certo modo, é causa daquilo que se via na caverna. 
- É evidente que chegaria gradualmente a tais reflexões. 
- E se, então, se recordasse da sua primeira habitação e da ideia que aí formavam da sabedoria, ele e os seus companheiros de escravidão, não se regozijaria com a mudança e não teria compaixão da desgraça daqueles que permaneciam cativos? 
- Certamente. 
- Crês tu que agora ele sentisse ciúmes das honras, das vaidades e recompensas ali outorgadas àquele que mais rapidamente captasse as sombras, àquele que com maior segurança recordasse as que iam atrás ou juntas e por tal razão seria o mais hábil em prever a sua aparição, ou que invejasse a condição daqueles que na prisão eram mais poderosos e mais honrados? Não preferiria, como Aquiles, segundo Homero, passar a vida ao serviço dum pobre lavrador e sofrê-lo, a voltar ao seu primeiro estado e às suas primitivas ilusões? 
- Não duvido de que preferiria suportar todos os males possíveis a voltar a viver de tal modo. 
- Atenta, pois, nisto: se regressasse novamente à sua prisão, para voltar a ocupar nela o seu antigo posto, não se acharia como um cego, na súbita passagem da luz do dia para a obscuridade? 
- Sim. 
- E se, no entanto, ainda não distinguisse nada e, antes que os seus olhos se houvessem refeito, o que apenas poderia acontecer depois de muito tempo, tivesse de discutir com os mais prisioneiros sobre essas sombras, não se tornaria ridículo aos olhos dos outros, que diriam dele que, por ter subido até lá acima, perdera a vista, acrescentando que seria uma loucura o eles pretenderem sair do lugar onde se encontravam, e que, se alguém se lembrasse de tirá-los dali e levá-los para a região superior, se tornaria necessário prendê-lo e matá-lo? 
- Indiscutivelmente. 
- Pois, meu querido Glauco, é essa, precisamente, a imagem da condição humana. A caverna subterrânea é este mundo visível; o fogo que a ilumina, a luz do Sol; o prisioneiro que ascende à região superior e a contempla é a alma que se eleva até à esfera do inteligível. É isto, pelo menos, o que penso, já que o queres conhecer, mas só Deus sabe se é certo. Pelo que me toca, a coisa afigura-se-me tal como te vou comunicar. Nos últimos limites do mundo inteligível encontra-se a ideia do bem, que só com dificuldade se percebe, mas que, todavia, não pode ser percebida sem que se conclua que ela é a causa primeira de quanto há de bom e de belo no universo; que ela, neste mundo visível, produz a luz e o astro do qual a luz irradia diretamente; que, no mundo visível, engendra a verdade e a inteligência; que é preciso, enfim, ter os olhos fitos nessa ideia, se quisermos conduzir-nos honestamente na vida pública e privada. 
- Na medida em que pude compreender a tua ideia, concordo contigo. 
- Tens, pois, de admitir e não estranhar que aqueles que alcançaram essa sublime contemplação desdenhem da intervenção nos assuntos humanos e que as suas almas aspirem, incessantemente, a fixar-se nesse lugar eminente. Assim deve ser, se isto está em conformidade com a pintura alegórica que esbocei. 
- Assim deve ser. 

Platão, in 'República'


Tema(s): Existência Ler outros pensamentos de Platão O Citador

sábado, 12 de abril de 2014

Bem no fundo

Bem no fundo

No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto
a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo
extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais
mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos
saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.
Paulo Leminski

sexta-feira, 11 de abril de 2014

ROSA

Tu és divina e graciosa, estátua majestosa
Do amor, por Deus esculturada
E formada com ardor
Da alma da mais linda flor de mais ativo olor
Que na vida é preferida pelo beija-flor
Se Deus me fora tão clemente aqui neste ambiente
De luz, formada numa tela deslumbrante e bela
Teu coração, junto ao meu lanceado
Pregado e crucificado sobre a rósea cruz do arfante peito teu


Tu és a forma ideal, estátua magistral
Oh alma perenal do meu primeiro amor, sublime amor
Tu és de Deus a soberana flor
Tu és de Deus a criação
Que em todo coração sepultas um amor
O riso, a fé, a dor em sândalos olentes cheios de sabor
Em vozes tão dolentes como um sonho em flor
És láctea estrela, és mãe da realeza
És tudo enfim que tem de belo
Em todo resplendor da santa natureza


Perdão se ouso confessar-te, eu hei de sempre amar-te
Oh flor, meu peito não resiste
Oh meu Deus, o quanto é triste
A incerteza de um amor que mais me faz penar em esperar
Em conduzir-te um dia ao pé do altar
Jurar aos pés do Onipotente em preces comoventes
De dor, e receber a unção da tua gratidão
Depois de remir meus desejos em nuvens de beijos
Hei de envolver-te até meu padecer de todo fenece

Pixinguinha e Otávio da Souza

Link: http://www.vagalume.com.br/marisa-monte/rosa.html#ixzz2yaP6DEI2

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Por debaixo dos Panos

O que a gente faz
É por debaixo dos pano
Prá ninguém saber
É por debaixo dos pano
Se eu ganho mais
É por debaixo dos pano
Ou se vou perder
É por debaixo dos pano...
É debaixo dos pano
Que a gente não tem medo
Pode guardar segredo
De tudo que se vê
É debaixo dos pano
Que a gente fala do fulano
E diz o que convém...
É debaixo dos pano
Que eu me afogo
Que eu me dano
Sem perder o bem...
O que a gente faz
É por debaixo dos pano
Prá ninguém saber
É por debaixo dos pano
Se eu ganho mais
É por debaixo dos pano
Ou se vou perder
É por debaixo dos pano...
É debaixo dos pano
Que a gente esconde tudo
E não se fica mudo
E tudo quer fazer
É debaixo dos pano
Que a gente comete um engano
Sem ninguém saber...
É debaixo dos pano
Que a gente
Entra pelo cano
Sem ninguém ver...
O que a gente faz
É por debaixo dos pano
Prá ninguém saber
É por debaixo dos pano
Se eu ganho mais
É por debaixo dos pano
Prá ninguém saber
É por debaixo dos pano
O que a gente faz
É por debaixo dos pano
Prá ninguém saber
É por debaixo dos pano
Se eu ganho mais
É por debaixo dos pano
Ou se vou perder
É por debaixo dos pano...
É debaixo dos pano
Que a gente esconde tudo
E não se fica mudo
E tudo quer fazer
É debaixo dos pano
Que a gente comete um engano
Sem ninguém saber...
É debaixo dos pano
Que a gente
Entra pelo cano
Sem ninguém ver...
Ney Matogrosso

terça-feira, 8 de abril de 2014

Constatação XIII - 2013/12

 (De uma quadrinha para ser declamada se assim o eventual declamador desejar e, evidentemente, desde que tenha ouvintes).


Quando o galo se punha a cantar,
Na madrugada, me fazendo acordar,
E por achar que ele nunca ia parar,
Tive que me pôr carneiros a contar.


Juca (José Zokner) in Rimas Primas

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Toada de ternura

Meu companheiro menino,
perante o azul do teu dia,
trago sagradas primícias
de um reino que vai se erguer
de claridão e alegria.

É um reino que estava perto,
de repente ficou longe:
não faz mal, vamos andando
porque lá é o nosso lugar.

Vamos remando, Leonardo,
poque é preciso chegar.
Teu remo ferindo a noite,
vai construindo a manhã.
Na proa do teu navio
chegaremos pelo mar.

Talvez cheguemos por terra,
na poeira do caminhão,
um doce rastro varando
as fomes da escuridão.
Não faz mal se vais dormindo,
porque teu sono é canção.

Vamos andando, Leonardo.
Tu vais de estrela na mão,
tu vais levando o pendão.
Tu vais plantando ternuras
na madrugada do chão.

Meu companheiro menino,
neste reino serás homem,
como o teu pai sabe ser.
Mas leva contigo a infância,
como uma rosa de flama
ardendo no coração:
porque é de infância, Leonardo,
que o mundo tem precisão.

Thiago de Mello

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Água de remanso

Cismo o sereno silêncio:
sou: estou humanamente
em paz comigo: ternura.

Paz que dói, de tanta.
Mas orvalho. Em seu bojo
estou e vou, como sou.

Ternura: maneira funda,
cristalina do meu ser.
Água de remanso, mansa
brisa, luz de amanhecer.

Nunca é a mágoa mordendo.
Jamais a turva esquivança,
o apego ao cinzento, ao úmido,
a concha que aquece na alma
uma brasa de malogro.

É ter o gosto da vida,
amar o festivo, o claro,
é achar doçura nos lances
mais triviais de cada dia.

Pode também ser tristeza:
tranquilo na solidão macia.
Apaziguado comigo,
meu ser me sabe: e me finca
no fulcro vivo da vida.

Sou: estou e canto

Thiago de Mello

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Põe quanto És no Mínimo que Fazes

Para ser grande, sê inteiro: nada 
          Teu exagera ou exclui. 

Sê todo em cada coisa. Põe quanto és 
          No mínimo que fazes. 

Assim em cada lago a lua toda 
          Brilha, porque alta vive 

Ricardo Reis, in "Odes" 
Heterónimo de Fernando Pessoa
Veja em CITADOR

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Poema em linha reta


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado
[sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida…
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Fernando Pessoa

Canção do exílio


Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.


Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.


Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.


Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar — sozinho, à noite —
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.


Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Gonçalves Dias
 
Coimbra - julho 1843.

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